Os médicos lutam para defender a sua carreira e o futuro do Serviço Nacional de Saúde, que tem vindo a ser alvo de um ataque sistemático, há décadas, às mãos dos sucessivos governos.
Gabriel García Márquez escreveu sobre a importância do amor, sobretudo nos tempos sombrios, daí a razão deste tributo. O amor, um dos sentimentos mais nobres da espécie humana, que tantas vezes tem sido capaz de vencer mesmo perante as maiores adversidades, não foi sempre capaz de travar a mesquinhez, mas a verdade é que sobreviveu a todas as malfeitorias e, resistindo, salvou a própria humanidade.
O terreno sindical é, também ele, um palco onde o amor confronta a mesquinhez, invariavelmente daqueles que defendem a sua profissão, o seu labor, o enamoramento pelo ofício, enfrentando os governantes que antagonizam essa paixão com a crueldade da pequena política, do tacticismo, dos jogos de bastidores e da ditadura do défice.
Nós, os médicos do SNS continuamos numa luta onde esbarramos nas más intenções e incompetência de um Ministério da Saúde (MS) e um Governo, que mantém o modus operandi dos seus antecessores, que têm culminado no desmantelamento propositado de um dos pilares da nossa sociedade democrática.
Os nossos salários estão congelados há 12 anos, não progredimos na carreira e continuamos a ser dos médicos mais mal pagos na Europa, a par da degradação das nossas condições de trabalho, das infraestruturas e da falta de meios básicos no dia-a-dia.
Temos dito que não há SNS sem médicos e que não há falta de médicos em Portugal, há carência no SNS, que continua a vê-los sair para o privado e a emigrar. Mas para colmatar este êxodo, o MS alavancou uma estratégia falida e que não é mais viável, assente no trabalho suplementar, como se viu no último mês, com o encerramento de Serviços de Urgência de norte a sul do país.
Os últimos 19 meses de negociação falharam na forma e no conteúdo, por incompetência da equipa ministerial. As reuniões revelaram-se infrutíferas, cancelamentos na véspera, sem envio das atas ou documentos, e sem resposta às propostas e contrapropostas sindicais. E, no mesmo dia em que se assiste à demissão do primeiro-ministro, António Costa, na sequência da atual crise política, o Governo publica, unilateralmente, à revelia do acordo com os médicos, um novo regime de trabalho, a Dedicação Plena, e legisla sobre as Unidades de Saúde Familiar, que levam ao aumento do limite anual do trabalho suplementar, ao fim do descanso compensatório depois do trabalho noturno, fazem depender suplementos remuneratórios à prescrição de exames e fármacos, e colocam, assim, a prática clínica em risco.
Recentemente o MS chamou os sindicatos novamente à mesa negocial. Depois de falhadas as expetativas de se chegar a um acordo, os médicos decidiram executar o dever de cumprir com a Lei, e não fazer mais horas extraordinárias para além das 150 obrigatórias por ano. Mas o MS veio para a mesa negocial, mais uma vez, munido com artimanhas de que aceitava discutir as soluções sindicais, mas o que aparentemente estava a ser dado com uma mão, estava a ser retirado com a outra.
O MS exige como “contrapartidas” para a reposição da jornada semanal de 35 horas e das 12 horas de urgência, o fim do descanso compensatório após o trabalho noturno e um faseamento associadas a métricas de produção do SNS, a que somos alheios. A reposição das férias foi só uma miragem, apenas para os médicos que se mantivessem a fazer trabalho noturno depois dos 50 anos, e urgência depois dos 55 anos. Por fim, a atualização salarial base, que devolvesse a perda do poder de compra da última década, transversal e equitativo para todos os médicos, independente do regime de trabalho e área profissional, não só não foi uma realidade, como tentaram mascará-lo com suplementos voláteis.
Nós não aceitamos fazer parte de uma cultura sindical que aceita acordos frágeis, que não acrescenta melhorias, que se limita a mitigar perda de direitos e que colocam a segurança dos doentes em risco, que cavam desigualdades entre médicos e onde os nossos internos, que são um terço da nossa força de trabalho, ficam esquecidos.
Todo o processo negocial foi minado para manipular a opinião pública, e foi Manuel Pizarro e António Costa que obrigaram os médicos a aprofundarem as suas formas de luta, vitais para que a palavra dos médicos continue a ter o volume que precisamos. As greves, as manifestações, a recusa em fazer mais do que as 150 horas suplementares por ano definidas pela Lei, têm sido o garante de que desta vez vamos mesmo ser ouvidos.
A nossa profissão é de altíssima responsabilidade e diferenciação. Continuamos a lutar pela nossa carreira, condições de trabalho dignas, salários justos e pelo tempo para vivermos as nossas vidas para além das fronteiras impostas pelo labor. Nós não queremos que o nosso trabalho seja um sacerdócio, apenas superável por aqueles que, por obstinação, dedicam toda sua vida laboral ao SNS. Lutamos por SNS universal, acessível e de qualidade para toda a população e sabemos que temos o país ao nosso lado.