O recente Livro Branco das Farmácias Portuguesas, promovido pela Associação Nacional de Farmácias (ANF), menciona a expectativa das farmácias e dos seus profissionais quanto à “implementação de um serviço estruturado de identificação e tratamento de situações clínicas ligeiras na farmácia comunitária, com recurso a protocolos de intervenção farmacêutica e referenciação para outros níveis de cuidados de saúde das situações que não forem passíveis de resolução na farmácia” (p. 32). Vão longe os tempos em que a ANF promovia uma intensa campanha contra a venda de preservativos em supermercados, alegando que “batatas era no supermercado e preservativos na farmácia”. Desde então vimos as farmácias transformarem-se também em perfumarias, sapatarias, bazares e noutras áreas de negócio. Lá se foram os princípios e ganhou a oportunidade de acumular lucro.
Agora declaram-nos a intenção de fazer aconselhamento em doenças, diagnosticando, prescrevendo e vendendo os medicamentos. Sempre foi acontecendo, em exercício ilegal de acto médico, bem o sabemos (basta entrar em qualquer farmácia e aguardar um pouco na fila de atendimento), mas agora querem também ser pagos pelo SNS por essa “actividade profissional”.
Curiosamente, o Código Deontológico dos Médicos (Regulamento 707/2016 de 21 de Julho) menciona por três vezes a separação clara entre quem diagnostica e prescreve, por um lado, e quem beneficia do comércio dos meios diagnósticos ou fármacos prescritos, por outro.
Art.º 60.º
2 — Não podem ser realizadas actividades em condições ou locais que possam comprometer a dignidade da profissão, a qualidade dos actos médicos, a reserva da intimidade dos doentes e o respeito pelo segredo médico.
3 — Consideram-se abrangidas pela proibição do número anterior, nomeadamente, as seguintes situações:
- a) Farmácias e parafarmácias;
- b) Estabelecimentos de vendas de próteses e ortóteses;
- c) Estabelecimentos de ópticas;
- d) Ervanárias.
Art.º 93.º
4 — É proibida qualquer forma de prescrição que vise o interesse financeiro do próprio médico ou de terceiros.
Art.º 126.º
1 — É proibida a venda pelo médico de medicamentos, dispositivos ou outros produtos médicos aos seus doentes.
É interessante esta consistência de princípios que, e bem, impõe aos médicos uma clara separação entre o desempenho da sua função de diagnóstico e tratamento e a comercialização dos produtos a usar. Todavia, na nova lógica da ANF e de quem lhe der cobertura, os comerciantes dos medicamentos ambicionam diagnosticar, prescrever e vender o tratamento. Claro que, por agora, tudo é feito com pezinhos de lã (“situações clínicas ligeiras…”), acedendo aos processos clínicos dos doentes e ultrapassando o sigilo profissional, que só aos interessados e aos seus médicos devem dizer respeito.
Há então uma nova lógica de conflito de interesses? Devem então os médicos começar a poder receitar e vender ao mesmo tempo? Na mesma lógica de facilitar a vida aos utentes e evitar duplicação de cuidados, espera-se que a ANF defenda essa alteração também.
Já nem se menciona a falta de formação e experiência clínica dos farmacêuticos, treinados na nobre arte de conhecer os medicamentos, mas não na semiologia, exame físico, diagnósticos diferenciais e adequados meios de diagnóstico a usar em cada situação patológica.
Afinal, se tudo se resume a aconselhar umas pastilhas para a febre ou dores de cabeça, nada haverá a alterar na prática corrente, pois já o fazem e sem o ónus de serem juridicamente responsabilizados pelos erros de diagnóstico ou conselhos mais ou menos atrevidos.
Seria útil definir primeiro os princípios orientadores e depois aplicá-los em coerência a todos os grupos profissionais, independentemente de interesses corporativos. A separação de interesses é um princípio saudável que deve ser mantido, em todos os grupos profissionais. Cada um recebe formação adequada ao seu desempenho competente. Misturar essas funções, ainda que com alegada intenção altruísta, só pode alimentar incompetência e o risco de confundir os legítimos interesses dos doentes com os próprios e os do negócio. E só pode aumentar a probabilidade de, qualquer dia, estarmos a comprar as batatas na farmácia.
In Público