A formação médica é longa e complexa, com diversas fases de aquisição progressiva de conhecimento e competências específicas. Assim se estruturam os Internatos, com médicos recém-licenciados cuja função é adquirir experiência nos vários domínios da prática clínica, e os internatos de especialidade em fase de formação diferenciada em cada área do conhecimento e da prática médica, cirúrgica, técnica etc, que os leva à graduação como especialistas.
Os internos, ainda que em formação progressiva, não são meros aprendizes, mas médicos em formação, em exercício, que vão desempenhando tarefas cada vez mais complexas de acordo com a sua curva de aprendizagem e aquisição de competências. Assim, na fase final do internato trabalham quase sempre como se especialistas fossem, embora sujeitos a supervisão de quem tem mais responsabilidade nos actos médicos.
Desta breve descrição decorre naturalmente que os internos são parte integrante da estrutura médica assistencial de qualquer serviço de média ou grande dimensão com responsabilidades próprias e desempenho de funções específicas. Por isso, durante anos o internato de Especialidade era o primeiro grau da Carreira Médica, o que lhes conferia o direito de se manterem no Serviço Nacional de Saúde (SNS) se assim o desejassem, ainda que sujeitos a efectuar os concursos de provimento às vagas disponibilizadas em cada momento. Outro aspecto importante dessa fase da carreira, é que o Internato era cumprido em regime de Dedicação Exclusiva. Uma consequência importante desse regime, era que todo o trabalho adicional (horas extraordinárias) era desempenhado na mesma instituição. Assim, era mais fácil distribuir o trabalho adicional por todos os internos e também avaliar o esforço que se lhes pedia, evitando sobrecargas excessivas. O sistema não era perfeito, mas permitia uma gestão dos recursos, acompanhamento permanente no desempenho clínico e todo o planeamento era feito com objectivo de assegurar assistência, mas também formação. Muitos médicos ficaram cativados pela dedicação ao SNS, onde se mantiveram muitos anos, mesmo que com remunerações frequentemente inferiores às de Colegas que optaram por trabalhar em regimes privados. O orgulho e prestígio na carreira contrabalançou em muitos casos o que se perdia em notas na carteira.
Em 1992 (Decreto-Lei 128/92) alterou-se a Carreira Médica e excluiu-se o Internato dos graus da Carreira (passou a iniciar-se apenas com a contratação como Especialista), o que significou perda de vínculo e de dedicação exclusiva. Claro que os médicos necessitam de assegurar a sua subsistência como quaisquer outros trabalhadores a passaram a terminar o contrato no final do internato. Confrontados com esse despedimento inevitável, todos tiveram de procurar outra ocupação profissional que lhes garanta subsistência e independência financeira após o tal despedimento, se ocorresse.
Assim, se foi consolidando o pluri-emprego que hoje envolve a generalidade dos Médicos Internos.
As consequências de tal mudança estão hoje à vista: abandono do SNS (mal pago) por oportunidades mais compensadoras e menos penosas, aderência a regimes de prestação de serviço (“tarefeiros”) onde são remunerados à hora, não têm responsabilidade na continuidade de cuidados nos serviços onde vão “fazer horas”, não têm enquadramento hierárquico, e a carência particularmente em certas épocas do ano transforma-os em “caixeiros-viajantes” diferenciados atravessando o país em várias direções para cumprir, por muito mais dinheiro, o trabalho adicional que recusam nos seus serviços, entretanto encerrados por falta de recursos. Estabeleceu-se um “canibalismo” entre instituições já não só públicas e privadas, mas também públicas-públicas!
Lamentavelmente, quem tem responsabilidade pela organização da Saúde em Portugal recusa ver isto e prefere centrar-se em mecanismos de incentivo por mais horas.
Como se se esta situação não fosse só por si de enorme gravidade, um grupo de Internos entendeu elaborar um “estudo” sobre o “burnout” dos médicos Internos em Portugal.
O “estudo” consistiu num inquérito preenchido voluntariamente pelos participantes, e que recolheu respostas de cerca de 17% dos internos do país, consistindo, pois, numa “amostra de conveniência” em que os resultados devem ser analisados e interpretados com prudência. São vários os erros metodológicos do referido “estudo”, mas a Ordem dos Médicos e a Direcção Editorial da revista (Acta Médica Portuguesa) que inclui o trabalho têm-se recusado a dar voz a quem tem críticas ao estudo e também a qualquer discussão sobre o mesmo. Está para além deste escrito aprofundar os erros metodológicos. Vale a pena, contudo, salientar que em nenhum momento a questão do pluri-emprego foi analisada ou sequer mencionada como factor de inevitável pressão e sobrecarga profissional.
Assim, lamentavelmente, ficou por analisar um factor que recomendaria urgente revisão no actual regime dos Internatos Médicos. Re-visitar a discussão da dedicação exclusiva durante o internato (com possível exclusão do último ano para quem desejar seguir outros caminhos) e aceitar que seja uma parte essencial da Carreira Médica, poderiam fazer mais pelo SNS do que mais um PETS e várias Comissões de acompanhamento!
Os internos devem ser vistos como médicos essenciais à vitalidade dos serviços e da eficiência do SNS e não como mera mão de obra que se vai usando a gosto enquanto convém, como se fossem vulgar utensílio de culinária.