Insistir em remunerações à hora, incentivando regimes de sobrecarga e perda de qualidade, revela enorme insensibilidade e espírito mercantilista que só pode complicar ainda mais a vida ao SNS.

Muito já se escreveu e disse sobre a crise que afecta o Serviço Nacional de Saúde. Lamentavelmente, no centro das preocupações e escândalos está o que deveria ser excepcional , o atendimento nos serviços de urgência. Se na obstetrícia e assistência aos partos isso é inevitável, pois é geralmente a natureza a determinar a “horinha”, já nos casos de doença aguda ou agudizada, esse serviço deveria ser a excepção, e não a regra para qualquer achaque ou mal-estar. No SNS, o diagnóstico e tratamento médico e cirúrgico e a acessibilidade às consultas do médico assistente (em centros de saúde ou hospitais) é que deveriam ser o centro da maior atenção, e as regras para isso funcionar bem são substancialmente diferentes das que levam a reduzir os escândalos com o tempo de espera na urgência. Será aí que se consegue proporcionar cuidados adequados aos cidadãos de todas as idades, mostrando que se é mais bem diagnosticado e tratado por quem já nos conhece do que numa consulta de ocasião por um médico que está lá hoje, mas não noutro dia qualquer.

As notícias e declarações de vários responsáveis (e alguns irresponsáveis, até!) sobre estes problemas tentam fazer-nos crer que o problema se resolve com pagamento atractivo por mais horas extraordinárias (sem vergonha em ignorar um limite de trabalho semanal máximo, acima do qual o risco de erros graves aumenta substancialmente), ou até sugerir que cada médico crie uma empresa unipessoal para trabalhar mais umas horinhas e receber bom dinheiro. Estas pobres almas desconhecem, ou esqueceram, que o trabalho médico, principalmente nas especialidades hospitalares, necessita de equipas coordenadas e coesas, em que cada um contribui com a competência específica para discussões e decisão em situações clínicas mais complexas, para garantir que nenhuma função essencial fica a descoberto, pois todos são solidários e co-responsáveis pelos resultados do serviço, e tenham a sua eficiência reconhecida. Isto não é possível com salários degradantes, em que a remuneração decente só se obtém se se passar horas e noites seguidas a fazer o que deveria ser a excepção.

Mesmo nos serviços de urgência, a eficiência depende da existência de equipas coesas e coordenadas e não da mera acumulação de “contratados” ou “tarefeiros” individuais. Não perceber isto e insistir em remunerações à hora, incentivando regimes de sobrecarga e perda de qualidade, revela enorme insensibilidade e espírito mercantilista que só pode complicar ainda mais um serviço que precisa de melhoria na sua organização e não de mero recrutamento de trabalhadores à hora!

Outra ideia que periodicamente vem à discussão sobre carência de médicos no SNS é a hipótese de prolongar, com obrigatoriedade, do trabalho dos recém-especialistas no SNS, após o internato. Esta ideia, ainda que bem-intencionada, é moralmente absurda. Os internos nos últimos anos da sua formação já desempenham quase sempre actividades de especialistas, embora não sejam remunerados como tal. O contrato de formação tem uma duração claramente estabelecida, e é exclusivamente da instituição a iniciativa de propor algum prolongamento até ocorrerem concursos de provimento, mas mantendo o pagamento ao nível de internos. Se se deseja que cada internato seja prolongado para 6,7 ou 8 anos, que se tenha a coragem de o afirmar (criando os internatos médico mais longos do mundo).

Mas tudo isso, mesmo que fosse sensato, seria apenas “empurrar com a barriga”, pois o problema seria idêntico dois anos mais tarde! O problema não está no tempo de retenção “obrigatória”, mas na remuneração decente e atractiva. Nestas discussões é frequentemente citado o exemplo da indústria ou Força Aérea, em que os trabalhadores estão vinculados a um período prolongado. E, por distracção ou desconhecimento, ignora-se que a situação é completamente diferente, pois o empregador compromete-se com um contrato longo que inclui a formação. Ora, nos internatos, o Estado apenas se compromete com o período formativo. Há anos que se quebrou o direito de continuidade na carreira que permitiu e aliciou muitos profissionais a manterem-se no serviço público. Talvez fosse mais sensato restabelecer esse vínculo contratual, em vez de inventar um novo regime escravizante em que o patrão decide quando dá carta de alforria ao trabalhador.

Portanto, nos complexos assuntos da saúde, há soluções que seriam provavelmente benéficas, mas quem os gere prefere olhar para outros lados, como se o mercantilismo fosse a melhor solução, e preferem optar pela política do “pau (baixo salário) e da cenoura (pagamento generoso à hora)”, esquecendo que há sempre “cenouras” mais apetitosas e menos penosas nos arredores! Como sempre, há cegueira pior do que não poder ver.

Jorge Amil Dias

In Público