A crise não nasce dos profissionais, mas de uma política que transforma a saúde num mercado.

O discurso que se tenta impor é o de que os médicos são responsáveis pelo estado da Saúde. É conveniente desviar atenções do essencial: o plano deliberado de enfraquecimento do SNS para entregar parcelas cada vez maiores aos grandes grupos privados. Anunciam-se ‘eficiências modernas’, compromissos de mil milhões para o setor privado e a expansão acelerada de grupos como Luz, Lusíadas ou Trofa Saúde, este já com 24 hospitais, que ocupam território à medida que o Estado recua. Nada disto é casual: cria-se o vazio no público, gera-se a crise e apresenta-se o privado como salvador pago por todos nós.

Repete-se que ‘100 km não é nada’ para uma urgência, como se a Península de Setúbal, com um milhão de habitantes, fosse uma aldeia isolada. Confundir urgências metropolitanas com regionais é manipulação. Em zonas densas cada minuto conta, em obstetrícia ainda mais. Quando se cita o alegado sucesso da urgência metropolitana do Porto, omite-se que a obstetrícia ficou de fora, porque tem de estar perto das pessoas. Uma grávida que percorre dezenas de quilómetros não está a ser ‘racionalizada’: está a ser colocada em risco.

Setenta e três bebés nasceram em ambulâncias, em estradas ou no chão da rua. O que era exceção tornou-se consequência direta de políticas que retiram proximidade e normalizam o risco.

Para justificar o desmantelamento, recuperou-se o slogan dos ‘cuidados de proximidade’. Mas ‘proximidade’ não são inaugurações pela secretária de estado de unidades de saúde privadas, enquanto hospitais públicos fecham serviços vitais. Proximidade é reforçar centros de saúde, maternidades, equipas completas e internamento no SNS. Hoje vemos o contrário: proximidade para os lucros, distância para os utentes e profissionais de saúde.

Também aqui os números são distorcidos. Os médicos não têm de trabalhar fora do concelho e, mesmo na dedicação plena, o limite é 30 km, e não 20 ou 25. No novo diploma das urgências regionais, o critério desapareceu: sem limite, um médico pode ser enviado do Minho ao Algarve por despacho.

E o anunciado suplemento de 500 euros evaporou-se no diploma. Política de anúncio: promete-se em conferências, apaga-se na lei. E os médicos, profissionais altamente diferenciados com responsabilidade máxima, exigem salários dignos, não suplementos ou incentivos incertos. A FNAM nunca teve acesso prévio ao diploma integral, o que revela uma negociação opaca, versões mutáveis e uma tutela cheia de contradições.

Fraudes devem ser investigadas com rigor, mas não usadas como arma política, para criar uma perceção global maliciosa. Notícias sobre alegadas irregularidades cometidas por médicos – algumas antigas, outras repetidas ciclicamente – servem para construir um inimigo público, não para esclarecer o país. Em simultâneo, num gesto populista, a ministra da saúde celebrou a comissão de combate à fraude e anunciou outra unidade idêntica – mais para as manchetes do que para os resultados. Talvez a próxima investigação devesse olhar para o SIGIC do Hospital Santa Maria: porque foram ignorados alertas? Porque foram ignoradas denúncias internas? Porque assinou Ana Paula Martins, então presidente do conselho de administração, os pagamentos em causa?

A crise não nasce dos profissionais, mas de uma política que transforma a saúde num mercado. Os cuidados de proximidade desaparecem, o acesso é bloqueado, os privados crescem e o SNS perde capacidade. É por isso que o Governo precisa de inventar um inimigo.