Há poucos dias um grupo de médicos insurgiu-se contra a ambivalência e evidente conflito de interesses em que alguns dirigentes da Ordem dos Médicos (OM) incorrem ao participar simultaneamente em órgãos dirigentes da instituição e serem porta-vozes ou coordenadores de grupos de trabalho ou comissões técnicas do Ministério da Saúde.
Houve quem se surpreendesse com este “sobressalto cívico”, pois há muito tempo que os representantes da OM intervêm no espaço público com opiniões que frequentemente são próximas de movimentos ou partidos políticos. Isso é verdade, mas tem sido reconhecido como o exercício de liberdade de opinião a que todos temos direito irrecusável.
O que agora está ainda a acontecer é a coincidência de funções dirigentes ou consultivas ao serviço da Ordem e também do Ministério da Saúde. E isso é um cenário novo! Cabe à Ordem
pronunciar-se e comentar, do ponto de vista técnico profissional, de forma independente, as medidas que os governos tomam sobre a saúde e assistência à doença.
Ora, essa independência perde-se quando os dirigentes da OM promovem, anunciam, coordenam e “acompanham” a execução de medidas do Ministério da Saúde. Caso o ministério entenda incorporar representação formal da OM em comissões técnicas, pode certamente fazê-lo como sempre, solicitando a indicação de representantes, mas não
convida directamente ou nomeia quem deseja receber nessa função.
Reagindo a esta carta que tem reunido apoio de centenas de médicos de todo o país, alguns colegas entenderam comentar que “não há nada de ilegal” e um estimado colega até anunciou o previsível afastamento duma comissão em que participa, alegando que “o
trabalho está feito”. Circularam também comentários sobre uma aparente perseguição pessoal ou interesses eleitorais. Reagir assim mostra que há quem não tenha percebido, ou desejado
perceber, que apenas foram invocados princípios de separação de funções, ainda a ser violados por vários outros colegas. Estão em causa regras que devem ser respeitadas por todos. A isso
chama-se habitualmente “código de conduta” em que a aceitação de determinadas funções exclui o desempenho de outras, que implicam interesses contraditórios ou potencialmente conflituosos. A transparência no exercício de funções de interesse público merece ser preservada, para que nada inquine ou faça duvidar das intenções de quem as desempenha.
Desengane-se também quem deseja ver qualquer interesse ou oportunismo nesta manifestação pública. As centenas de médicos que têm engrossado a lista de signatários do documento mostra bem o que está em causa.
Fará bem o Ministério da Saúde em convidar médicos competentes para ajudar a solucionar graves problemas organizativos. Todavia, quando essa escolha recair sobre dirigentes de
organizações profissionais, como a OM, deve haver uma coerente separação de águas e interesses. Não será necessário deixar qualquer comissão ou grupo de trabalho no Ministério da Saúde, mas será desejável que se pondere suspender ou abandonar as funções dirigentes na Ordem dos Médicos A escolha é individual e livre, mas, por favor, façam um esforço para ver o que já é visível e desejável para numerosos médicos.
A não ser assim, restar-nos-á citar um
divertido personagem encarnado há muitos anos por Nicolau Breyner, que em cada episódio se interrogava: “Qué mais irá nos acontecê?”
In Público